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No Pico, a montanha vulcânica ( capítulo II )

À hora do pôr-do-sol, deitei-me na minha rede. Para ver a noite cair, sentir na face o vento fresco da montanha, inspirar os mil cheiros da ilha, ouvir as novas composições melódicas que estão na “epiderme” do Pico. Neste cenário, a paz envolve-nos com tamanha segurança que chega a ser melhor do que o colo da Mãe. A tua presença sempre foi tão forte e constante, mesmo quando não sabia nada de ti, que cheguei a preferir a tua ausência. Aquele mergulho monumental e a tua escusa de ver comigo o pôr-do-sol, como se fosses pólen e vespa, fez-me desejar tanto um pote de mel, que era preferível ficar a sós. Na ilha do Pico não existe o conceito de pecador, senão toda ela era fruto de pecados excessivos. Cada um vive a sua vida sem interferir na dos outros. Não porque a vida seja muito agitada, pelo contrário, mas não há tempo que se queira desperdiçar com mundanices. Até era provável que nunca soubesse onde tinhas ido. Entre nós, não há perguntas nem justificações, senão lá se ia a mística toda da nossa relação. Deitei-me cedo, queria fugir da “boca” da noite. É sempre mais atrevida, provocadora, sexy, do que a “boca” do dia. Tinha pressa de dormir para ver se, no dia seguinte, a tua imagem ao mar tinha desaparecido do meu pensamento. Apaguei a vela e oiço-te entrar. Estremeci, não sabia o que fazer, apercebi-me de que não me tinha preparado para o teu regresso. No Pico é assim, não se antecipam cenários, vive- se o momento. Há uma espécie de áurea sobre ti que te faz crer na eternidade. Mas tu (ainda) não eras ” Pico” e isso fazia a diferença. Nem me deste tempo para mostrar o teu quarto e, agora, que fazia eu? Fui à janela e deitei-me imediatamente. Claro que ias perceber que só um quarto tinha a porta fechada, logo um dos outros dois era o teu. Acordei muito cedo, desci as escadas tranquilamente, como se as minhas socas não soubessem se davam um passo atrás ou dois à frente.

Chego à cozinha e reparo logo numa chávena pintada com pequenos malmequeres em cima da mesa. A pintura não era do velho guia de baleeiro. Percebi que tinhas ido passar o pôr-do-sol ao posto de vigia junto do octogenário artista. Pediste-lhe para te ensinar a pintar os malmequeres do meu vestido. Não contive a emoção, “abracei” a chávena, partia-a, claro! Como te ia aparecer… com cacos? Estava na mesa a tentar colar os pedaços, quando surges sorridente. Até me cortei fazendo um pequeno golpe no indicador. Pegas-me na mão, colocas o dedo na tua boca, fazendo pressão com os lábios. Senti-me a ser engolida pela caldeira do vulcão. Tive vontade de me cortar no resto do corpo. Não podias parar se não morria por falta de oxigénio no sangue. – O teu sangue palpitava! Disseste num tom desafiante. Encostas-te à parede a comer um figo. Pausadamente, vais-me dizendo que a chávena não tinha ficado perfeita e acabei por te fazer um favor. Já tinhas um bom motivo para perder o avião, tinhas de pintar uma nova chávena, com o velho guia, ao pôr-do-sol. Quando o sol já caía, mais para o lado de lá do mundo, dizes-me para calçar umas sandálias que me ias levar a um sítio que não conhecia. Devia estar doido, não havia canto na ilha que eu não conhecesse, ele é que era novo por estas bandas Agarrou-me na mão, puxando-a com firmeza e bateu a porta de casa.

quequeasextafeira

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