Vejo-te semi-nu entre a rede e o mar. Pareces a tua primeira vez. Impreparadamente preparado para ir à escola, ao treino, à faculdade, à tropa, ao primeiro encontro. Hoje não tens maquinista. Estás perfeito na tua eterna imperfeição. Assim, nem parece que não desmontaste a árvore de natal. Toda a vida testemunha. Sem tomar a iniciativa. Chegavas no segundo parágrafo da estória ou nem sequer chegavas! Da tua e da dos outros. O teu corpo, nesta suave transparência, parece tão pouco usado…transpiras inocência, mas dão-te por condenado. Parece que deixaste o cigarro apagado. A tua face tem um tom de outro lugar. Talvez não pertenças aqui. Por isso, és a tua primeira vez, entre a rede e o mar. @quequesasextafeira
Prepara uma malinha vermelha de cartão. Transportava-a na infância com loicinhas de barro e alumínio. Restos de tecidos e uma boneca de plástico. Sempre que ía de férias ou para a casa da avó levava-a consigo. Uns anos depois, ali fora guardada a primeira carta de um rapaz. No envelope mal dobrado, numa folha arrancada do caderno lia-se : “Queres namorar comigo ? Diz sim ou não. Assinado. Pedro.” Foi enchendo a malinha de cartas; bilhetes; postais; papelinhos. A carta do Pedro ficara no fundo. Desfizera-se de todos os objectos menos daquela malinha.
Ía servir para um momento especial. Por isso, as cartas foram cuidadosamente guardadas, na gaveta dos biquínis. Era Outono. Um licor ía cair muito bem no seu encontro. A cantarolar “Got My Mind Set On You” tira do armário dois copos de chotes. Sente a cabeça à roda. Como se tivesse acabado de “entornar” três ou quatro copos. Old Times. Sorri. Enfia uns jeans, uma malha branca, calça umas sapatilhas brancas. Longe ía o tempo de perder três horas a arranjar-se para um encontro especial. Ri-se. Recorda o episódio da compra de uns sapatos de salto alto (caríssimos). Só os usou aquela vez. O salto era demasiado fino e comprido. Dá uma gargalhada.
A vida tinha-se tornado tão simples, tão leve, tão bela quanto a sua malinha vermelha de cartão. Põe protetor solar na cara, passa a escova no cabelo e pinta os lábios de um tom suave. Atira o telemóvel para o sofá. Ele nunca se atrasava. Abre a malinha. Põe tambem lá um chocolate. Um chocolate faz sempre um final feliz. Bateu a porta. Lá vai ela em direção à Azinheira. Na mão a malinha vermelha de cartão. Da boneca de plástico, da carta do Pedro, do presépio de natal. Autor quequeasextafeira